A OPINIÃO PÚBLICA NÃO EXISTE1


Pierre Bourdieu

Primeiramente eu gostaria de deixar claro que o meuobjetivo não é denunciar de uma forma mecânica e fácil as pesquisas de opinião, mas, sim proceder a uma análise rigorosa de seu funcionamento e suas funções. O que supõe o questionamento de seus três postulados implícitos. Qualquer pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou, colocando de outra maneira, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos. Mesmo sabendo que poderei me chocar com um sentimento ingenuamente democrático, contestarei este primeiropostulado. Segundo postulado: supõe-se que todas as opiniões têm valor. Acho que é possível demonstrar que não é nada disso e que o fato de se  acumular opiniões que absolutamente não possuem a mesma força real, faz com que se produza artefatos sem sentido. Terceiro postulado implícito: pelo simples fato de se colocar a mesma questão a todo mundo, está implícita, a hipótese de que há um consenso sobre os problemas, ou seja, que há um  acordo sobre as questões que merecem ser colocadas. Estes três postulados implicam, parece-me, toda uma série de distorções observadas  mesmo quando todas as condições do rigor metodológico são preenchidas  na coleta e na análise dos dados.

Costuma-se freqüentemente fazer críticas técnicas às pesquisas de opinião. Por exemplo, coloca-se em dúvida a representatividade das amostras. Acho que no estado atual dos meios utilizados pelos escritórios de produção de pesquisas, a objeção não é muito fundamentada. Reprovam-lhes também o fato de colocar questões contendo viéses ou, mais ainda, de colocar viéses na formulação das questões: isto já  é mais verdadeiro e freqüentemente a resposta é induzida através da maneira de se colocar a questão. Assim, por exemplo, transgredindo o preceito elementar da
1Comunicação feita em Noroit (Arras) em janeiro de  1972 e publicada em  Les Temps Modernes, 318, janeiro de 1973.
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construção de um questionário que exige que se "dê oportunidade" a todas as respostas possíveis, omite-se freqüentemente nas questões ou nas respostas propostas uma das opções possíveis, ou ainda, propõe-se muitas vezes a mesma opção sob formulações diferentes. Existem todos estes tipos de viéses e seria interessante se perguntar sobre as condições sociais que propiciam seu aparecimento. Na maioria das vezes, eles têm a ver com as condições em que trabalham as pessoas que produzem  os questionários. Mas devem-se principalmente ao fato de que as problemáticas fabricadas pelos institutos de pesquisa de opinião estão subordinadas a uma demanda de tipo particular. Assim, empreendendo a análise de uma grande pesquisa nacional sobre a opinião dos franceses a respeito do sistema de ensino, nós localizamos, nos arquivos de alguns centros de estudos, todas as questões referentes ao ensino. Isto nos fez ver que mais de  duzentas perguntas sobre o sistema de ensino foram feitas depois de Maio de 68, contra menos de vinte entre 1960 e 1968. Isto significa que as problemáticas impostas a este tipo de organismo estão profundamente ligadas à conjuntura  e dominadas por um certo tipo de demanda social. A questão do ensino, por exemplo, só pôde ser colocada por um instituto de opinião pública quandose tornou um problema político. Vê-se imediatamente a distância que separa estas instituições dos centros de pesquisas que engendram suas problemáticas, senão em céu aberto, pelo menos com uma distância muito maior emrelação à demanda social sob sua forma direta e imediata.
Uma análise estatística sumária das questões colocadas nos mostrou que a grande maioria se ligava diretamente às preocupações políticas do "pessoal político". Se esta noite quiséssemos nos divertir brincando com papeizinhos e se eu lhes dissesse para escrever as  cinco questões que lhes parecem mais importantes sobre o ensino, seguramente obteríamos uma lista muito diferente da que obtemos a partir das questões que foram efetivamente colocadas pelas pesquisas de opinião. A pergunta: "Deve-se introduzir a política nas escolas secundárias?" (ou variantes) foi colocada com muita freqüência, enquanto a pergunta: "Deve-se modificar os programas?" ou "Deve-se modificar o modo de transmissão dos conteúdos?", raramente foi colocada. Da mesma forma: "Deve-se reciclar os professores?". E tantas questões que são muito importantes, pelo menos em outra perspectiva.
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As problemáticas que são propostas pelas pesquisas  de opinião se subordinam a interesses políticos, e isto dirige de maneira muito acentuada o significado das respostas e, ao mesmo tempo, o significado dado à publicação dos resultados, Em seu estado atual, a pesquisa de opinião é um instrumento de ação política; sua função mais importante consiste talvez em impor a ilusão de que existe uma opinião pública que é a soma puramente aditiva de opiniões individuais; em impor a idéia de que existe algo que seria uma coisa assim como. a média das opiniões ou a opinião média. A "opinião pública" que se manifesta nas primeiras páginas dos jornais sob a forma de percentagens (60% dos franceses são favoráveis à...), esta opinião pública é um artefato puro e simples cuja função é dissimular que o estado da opinião em um dado momento do tempo é um sistema de forças, de tensões e que não há nada mais inadequado para representar o estado da opinião do que uma percentagem.
Sabemos que todo exercício da força se acompanha deum discurso visando a legitimar a força de quem o exerce; podemos mesmo dizer que é próprio de toda relação de força só ter toda sua força na medida em que se dissimula como tal. Em suma, falando simplesmente,  o homem político é aquele que diz: "Deus está conosco". O equivalente  atual de "Deus está conosco" é "a opinião pública está conosco". Tal é  o efeito fundamental da pesquisa de opinião: constituir a idéia de que existe uma opinião pública unânime, portanto legitimar uma política e reforçaras relações de força que a fundamentam ou a tornam possível.
Tendo dito no começo o que queria dizer no fim, vou tentar indicar muito rapidamente quais são as operações através das quais se produz este efeito de consenso. A primeira operação, que tem como ponto de partida o postulado segundo o qual todo mundo deve ter uma opinião, consiste em ignorar as não-respostas. Por exemplo, você pergunta às pessoas: "Você é favorável ao governo Pompidou?" Você registra 30% de não-resposta, 20% de sim, 50% de não. Você pode dizer: a parte das pessoas desfavoráveis é superior à parte das pessoas favoráveis e depois há este resíduo de 30%. Você também pode recalcular as percentagens favoráveis e desfavoráveis excluindo as não-respostas. Esta simples escolha é uma operação teórica de uma importância fantástica, sobre a qual eu gostaria de refletir com vocês.
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Eliminar as não-respostas, é fazer aquilo que se faz numa consulta eleitoral onde há votos nulos ou brancos; é impor à pesquisa de opinião a filosofia implícita da pesquisa eleitoral. Se olharmos mais de perto, observamos que a taxa de não-respostas é de um modo geral mais elevada entre as mulheres do que entre os homens, que a distância entre as mulheres e os homens torna-se maior quando os problemas colocados são de ordem mais propriamente política. Outra observação: quanto mais uma pergunta se refere a problemas de saber, de conhecimento, maior é a distância entre as taxas de não-respostas dos não-instruídos e dos menos instruídos. Ao contrário, quando as perguntas se referem a problemas éticos, as variações das não-respostas segundo o nível de instrução são  fracas (exemplo: "Deve-se ser severo com as crianças?"). Outra observação: quanto mais uma pergunta coloca problemas conflitivos, se refere a  algum ponto contraditório (por exemplo, uma pergunta sobre a situação na Tchecoslováquia para pessoas que votam nos comunistas), mais ela gera tensões para uma determinada categoria, maior a freqüência de não-respostas nesta categoria.
Conseqüentemente, a simples análise estatística das não-respostas dá uma informação sobre o que significa a pergunta e também sobre a categoria considerada, sendo esta definida tanto pela probabilidade a ela imputada de ter uma opinião quanto pela probabilidade condicional de ter uma opinião favorável ou desfavorável.
A análise científica das pesquisas de opinião mostra que praticamente não existe problema omnibus: não existe pergunta que não seja reinterpretada em função dos interesses das pessoas às quais ela é colocada e o primeiro imperativo seria o de se perguntar a que pergunta as diferentes categorias de inquiridos pensaram estar respondendo. Um dos efeitos mais perniciosos da pesquisa de opinião consiste precisamente em colocar pessoas respondendo perguntas que elas não se perguntaram.. Como por exemplo as questões que giram em torno dos problemas da moral, tratem elas  sobre a severidade dos pais, as relações entre professores e alunos, a pedagogia diretiva ou não-diretiva, etc., problemas que são encarados como problemas éticos à medida em que se desce na hierarquia social, mas que podem ser considerados como problemas políticos pelas classes superiores. Um dos efeitos da pesquisa consiste em transformar as respostas éticas em respostas políticas pelo
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simples efeito de imposição da problemática.
De fato, há muito princípios a partir dos quais se  pode engendrar uma resposta. Primeiramente, há aquilo que podemos chamar de competência política em relação a uma definição de política ao  mesmo tempo arbitrária e legítima, isto é, dominante e dissimulada enquanto  tal. Esta competência política não é repartida universalmente. Ela, a grosso modo, varia como o nível de instrução. Dito de outra maneira, a probabilidade de se ter uma opinião sobre todas as questões que supõem um saber político é bastante comparável à probabilidade de ir ao museu. Podemos observar diferenças fantásticas: onde um estudante engajado em qualquer movimento esquerdista percebe quinze divisões à esquerda do PSU, um quadro médio não vê nada. Na escala política (extrema-esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita, direita, extrema-direita, etc.) que as pesquisas de ciências políticas empregam como algo óbvio, certas categorias sociais utilizam intensamente um cantinho da extrema-esquerda; outras utilizam unicamente o centro, outras utilizam a escala inteira. Finalmente uma eleição é a agregação de espaços inteiramente diferentes; soma-se pessoas que tiram as medidas por centímetros com pessoas que o fazem por quilômetros, ou seja, pessoas que graduam de 0 a 20 e pessoas que graduam de 9 a 11. Mede-se a competência, entre outras coisas, pelo grau de requinte da percepção (é a mesma coisa em estética, alguns podendo distinguir os cinco ou seis estilos  sucessivos de um único pintor).
Esta comparação pode ser levada mais longe. Em matéria de percepção estética há, em primeiro lugar, uma condição permissiva: é preciso que as pessoas pensem a obra de arte como obra de arte. Depois de tê-la percebido como obra de arte é preciso que tenham categorias de percepção para construí-la, estruturá-la, etc. Suponhamos uma pergunta formulada assim: "Você é a favor de uma educação diretiva ou de uma  educação não-diretiva?" Para alguns, ela será constituída como política onde a representação das relações pais-filhos se integra numa visão sistemática da sociedade; para outros, é uma pura questão moral. Assim, o questionário que elaboramos e onde perguntamos às pessoas se, para eles, fazer greve, ter cabelos longos, participar de um festival pop, etc., são coisas políticas ou não, mostrou variações muito grandes dependendo das classes sociais. A primeira condição
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para responder adequadamente a uma pergunta política é, portanto, ser capaz de constituí-Ia enquanto política. A segunda, tendo-a constituído como política, é ser capaz de aplicar a ela categorias propriamente políticas que podem ser mais ou menos adequadas, mais ou menos refinadas, etc. Tais são as condições específicas da produção de opiniões, que  a pesquisa de opinião supõe estarem universal e uniformemente preenchidas com o seu primeiro postulado segundo o qual todo mundo pode produzir uma opinião.
O segundo princípio a partir do qual as pessoas podem produzir uma opinião é o que chamo de "ethos de classe" (para não dizer "ética de classe"), isto é, um sistema de valores implícitos que as pessoas interiorizam desde a infância e a partir dos quais produzem respostas a  problemas extremamente diferentes. As opiniões que as pessoas podem trocar na saída de uma partida de futebol entre Roubaix e Valenciennes devem uma grande parte de sua coerência, de sua lógica, ao ethos de classe. Uma enorme quantidade de respostas, consideradas como políticas são na realidade produzidas a partir do ethos de classe e podem se revestir, ao mesmo tempo, de um significado inteiramente diferente quando são interpretados no  terreno político. Aqui, tenho que fazer uma referência a uma tradição sociológica, divulgada principalmente entre certos sociólogos da política  nos Estados Unidos, que falam muito comumente de um conservadorismo e de um autoritarismo das classes populares. Estas teses estão baseadas na comparação internacional de pesquisas ou de eleições que tendem a mostrar que cada vez que se interroga as classes populares, em qualquer país que seja, sobre problemas referentes às relações de autoridade, liberdade individual, liberdade de imprensa, etc., elas dão respostas mais "autoritárias" do que as outras classes. E daí se conclui, de uma maneira global, que há um conflito entre os valores democráticos (no autor em que estou pensando, Lipset, trata-se de valores democráticos americanos) e os valores que as classes populares interiorizam, valores de tipo autoritário e repressivo. Daí se tira uma espécie de visão escatológica: elevemos o nível de vida; elevemos o nível de instrução, pois já que a propensão à repressão, ao autoritarismo, etc., está ligada às baixas rendas, aos baixos níveis de instrução, etc., produziremos assim bons cidadãos da democracia americana. A meu ver, o que  está em questão é o significado das respostas a algumas perguntas. Suponhamos um conjunto de
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questões do tipo seguinte: Você é favorável a igualdade de sexos? Você é favorável à liberdade sexual dos cônjuges? Você é favorável a uma educação não-repressiva? Você é favorável à nova sociedade?,etc. Suponhamos um outro conjunto de questões do tipo: Os professores devem fazer greve quando sua situação se encontrar ameaçada? Os docentes devem ser solidários aos outros funcionários nos períodos de conflito social?, etc. Estes dois conjuntos de perguntas dão respostas com estruturas estritamente inversas quanto à classe social. O primeiro conjunto de perguntas, que se refere a um certo tipo de renovação nas relações sociais, na forma simbólica das relações sociais, suscita respostas muito mais favoráveis quando se sobe na hierarquia social e na hierarquia segundo o nível de instrução; inversamente, as perguntas que se referem às transformações reais das relações de força entre as classes sociais suscitam respostas mais e mais desfavoráveis à medida que se sobe na hierarquia social.
Resumindo, a proposição "as classes populares são repressivas" não é nem verdadeira nem falsa. É verdadeira na medida em que, diante de todo um conjunto de problemas como os que tocam à moral doméstica, às relações entre as gerações ou entre os sexos, as classes populares têm a tendência de se mostrar muito mais severas do que as outras classes sociais. Ao contrário, sobre as questões de estrutura política, que colocam em jogo a conservação ou a transformação da ordem social, e não apenas a  conservação ou a transformação dos modos de relação entre os indivíduos, as classes populares são muito mais favoráveis à inovação, isto é, a uma transformação das estruturas sociais. Vocês podem ver como certos problemas colocados em Maio de 68, e freqüentemente mal colocados, no conflito entre o Partido Comunista e os esquerdistas, ligam-se diretamente ao problema central que tentei colocar esta noite, o da natureza das respostas, isto é, do princípio a partir do qual elas são produzidas. A oposição que fiz entre estes dois grupos de perguntas se remete, com efeito, à oposição entre dois princípios da produção de opiniões: um princípio propriamente político e um princípio ético, sendo o problema do conservadorismo das classes populares produto da ignorância desta distinção.
O efeito de imposição da problemática, efeito exercido por qualquer pesquisa de opinião e por qualquer interrogação política (a começar pela
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eleitoral), resulta do fato de que às perguntas colocadas numa pesquisa de opinião não são perguntas que realmente se colocam  a todas as pessoas interrogadas e as respostas não são interpretadas em função da problemática que servia efetivamente como referência, às diferentes categorias de inquiridos. Assim, a problemática dominante, cuja i magem é revelada pela lista de perguntas feitas durante dois anos pelos institutos de pesquisas de opinião, ou seja, a problemática que interessa essencialmente às pessoas que detêm o poder e querem ser informadas sobre os meios de organizar sua ação política, é dominada de forma bastante desigual pelas diferentes classes sociais. E, fato importante, estas estão mais ou menos aptas a  produzir uma contra-problemática. A respeito do debate televisionado entre Servan-Schreiber e Giscard d'Estaing, um instituto de pesquisa de opinião colocou perguntas do tipo: "0 sucesso escolar se deve ao talento, à inteligência, ao trabalho, ao mérito?" As respostas obtidas efetivamente liberam uma informação (ignorada por aqueles que as produziam) sobre o grau de consciência das diferentes classes sociais a respeito das leis de transmissão  hereditária do capital cultural: a adesão ao mito do talento e da ascensão através da escola, da justiça escolar, da eqüidade da distribuição dos cargos em função dos títulos, etc., é muito forte nas classes populares. A contra-problemática pode existir para alguns intelectuais, mas não tem força social, embora tenha sido retomada por alguns partidos e grupos. A verdade científica é submetida às mesmas leis de difusão que a ideologia. Uma proposição científica é como uma bula papal sobre o controle da natalidade que só prega aos convertidos.
A idéia de objetividade numa pesquisa de opinião é associada ao fato de se fazer a pergunta nos termos mais neutros possíveis para dar chances a todas as respostas. Na verdade, a pesquisa de opinião estaria, sem dúvida, muito mais próxima do que acontece na realidade se, transgredindo completamente as regras da "objetividade", fossem dados às pessoas os meios para que elas se situassem da mesma forma como realmente se situam na prática real, isto é, em relação a opiniões já formuladas. Se por exemplo, em vez de dizer "Há pessoas que são favoráveis ao controle da natalidade e outras são desfavoráveis e você?...", se enunciasseuma série de tomadas de posição explícita de grupos solicitados para constituir e difundir opiniões, de modo que as pessoas pudessem se situar em relação à respostas já


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constituídas. Fala-se freqüentemente de “tomadas deposição"; existem posições que já são previstas e que são tomadas. Mas isso não acontece por acaso. Uma pessoa toma as posições que está predisposta a tomar em função da posição que ocupa num certo campo. Uma análise rigorosa visa explicar as relações entre a estrutura de posições a serem tomadas e a estrutura do campo das posições objetivamente ocupadas.
Se as pesquisas de opinião apreendem muito mal os estados virtuais da opinião e mais exatamente os movimentos de opinião, é, entre outras razões, porque a situação na qual elas apreendem as opiniões é inteiramente artificial. Nas situações em que se constitui a opinião, em particular as situações de crise, as pessoas se encontram diante de opiniões constituídas, de opiniões sustentadas por grupos, de forma que escolher entre duas opiniões é evidentemente escolher entre grupos. Tal é o princípio do efeito de politização que produz a crise: é preciso escolher entre grupos que se definem politicamente e definir cada vez mais tomadas de posição em função de princípios explicitamente políticos. De fato, o que me parece importante é que a pesquisa de opinião trata a opinião pública como  uma simples soma de opiniões individuais, recolhidas numa situação que  no fundo é a da cabine indevassável, onde o indivíduo vai exprimir furtivamente, no isolamento, uma opinião isolada. Nas situações reais, as opiniões são forças e as relações entre opiniões são conflitos de força entre os grupos.
Uma outra lei resulta destas análises: tem-se muito mais opiniões sobre um problema quando se está mais interessado por este problema, isto é, quando se tem mais interesse neste problema. Por exemplo, a taxa de respostas sobre o sistema de ensino está muito intimamente ligada ao grau de proximidade em relação ao sistema de ensino, e a probabilidade de ter uma opinião varia em função da probabilidade de ter poder sobre o que se opina. A opinião que se afirma enquanto opinião, espontâneamente, é a opinião das pessoas cuja opinião tem peso, como se costuma dizer. Se um Ministro da Educação agisse em função de uma pesquisa de opinião (ou pelo menos a partir de uma leitura superficial da pesquisa), elenão faria o que ele faz quando age realmente como um homem político, isto é, a partir dos telefonemas que recebe, da visita de tal responsável sindical, de tal decano, etc. De fato, ele age em função destas forças de opinião realmente
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constituídas que só afloram à sua percepção à medida em que têm força e têm força porque são mobilizadas.
Quanto a prever o que será da Universidade nos próximos dez anos, acho que a opinião mobilizada constitui a melhor base. No entanto, o fato - atestado pelas não-respostas - de que as disposições de certas categorias não acedem ao estatuto de opinião, isto é, de discurso  constituído aspirando à coerência, aspirando a ser ouvido, a se impor, etc., não deve levar à conclusão de que, em situações de crise, as pessoas que não tivessem nenhuma opinião escolheriam ao acaso. Se o problema está politicamente constituído para eles (problemas salariais e de ritmo de trabalho para os operários), eles vão escolher em termos de competência política. Se trata-se de um problema que não está politicamente constituído para eles (caráter repressivo das relações na empresa), ou se está em vias de constituição, as pessoas serão guiadas pelo sistema de disposições profundamente inconsciente que orienta as escolhas nos mais diferentes domínios, desde a estética ou o esporte até as preferências econômicas. A pesquisa de opinião tradicional ignora, ao mesmo tempo, os grupos de pressão e as disposições virtuais que às vezes não se exprimem sob a forma de discurso explícito. É por isto que ela não é capaz de produzir nenhuma previsão razoável sobre o que acontecerá numa situação de crise.
Suponhamos um problema como o do sistema de ensino. Pode-se perguntar: "0 que você acha da política de Edgar Faure?" É uma pergunta muito próxima a de uma pesquisa eleitoral, no sentido de que à noite todos os gatos são pardos: grosso modo, todo mundo está de acordo sem saber sobre o que; sabe-se o que significou o voto por unanimidade da lei Faure na Assembléia Nacional. Em seguida, pergunta-se "Você é favorável à introdução da política nos colégios secundários?" Aqui, observa-se uma divisão muito nítida. Ocorre o mesmo quando se pergunta: "Os professores podem fazer greve?" Neste caso, os membros das classes populares, por uma transferência de sua competência política específica, sabem o que responder.
Pode-se perguntar ainda: "Deve-se transformar os programas? Você é favorável à aferição contínua dos resultados? Você  é favorável que os pais de alunos entrem para os conselhos de professores? Você é a favor da
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agrégation?"2, etc. Na pergunta "você é favorável a Edgar Faure?", havia todas estas perguntas e as pessoas tomaram uma única posição de uma só vez sobre um conjunto de problemas que um bom questionário só poderia colocar através de pelo menos sessenta perguntas a propósito das quais se observariam variações em todos os sentidos. Em alguns casos as opiniões estariam positivamente ligadas à posição na hierarquia social, em outros, negativamente, às vezes de maneira muito forte, às  vezes de maneira fraca, ou não teriam nenhuma ligação. Basta pensar que uma consulta eleitoral representa o limite de uma pergunta como, "você é favorável a Edgar Faure?", para compreender porque os especialistas de sociologia política notam que a relação que se observa habitualmente, em quase todos os domínios da prática social, entre a classe social e as práticas ou as opiniões, é muito fraca quando se trata de fenômenos eleitorais, a tal ponto que alguns não hesitam em concluir que não há qualquer relação entre a classe social e o fato de votar na direita ou na esquerda. Se vocês tiveram em mente que uma consulta eleitoral coloca numa única pergunta sincrética aquilo que só poderia ser razoavelmente apreendido em duzentas perguntas, que uns medem em centímetros e outros em quilômetros, que a estratégia dos candidatos consiste em colocar mal as perguntas e se esforçar ao máximo para esconder as clivagens e ganhar votos indecisos, e tantas outras coisas, vocês concluirão que talvez seja preciso inverter a questão tradicional da relação entre voto e classe social e se perguntar por que, apesar de tudo, constata-se uma relação, mesmo fraca; e se interrogar sobre a função do sistema eleitoral, instrumento que por sua própria lógica, tende a atenuar os conflitos e as clivagens. O que é certo é que estudando o funcionamento das pesquisas de opinião, pode-se ter uma idéia da maneira como funciona este tipo particular de pesquisa que é a consulta eleitoral e do efeito que ela produz.
Em suma, o que eu quis dizer foi que a opinião pública não existe, pelo menos na forma que lhe atribuem os que têm interesse em afirmar sua existência. Disse que por um lado haviam opiniões constituídas, mobilizadas, grupos de pressão mobilizados em torno de um sistema de interesses explicitamente formulados; e por outro lado, disposições que, por definição,
 2 Agrégation: o titulo mais alto recebido após a conclusão de certos cursos superiores, como por exemplo o curso de Letras ou História.


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não constituem opinião, se por esta palavra compreendemos, como fiz ao longo desta análise, alguma coisa que pode ser formulada num discurso com uma certa pretensão à coerência. Esta definição da  opinião não é a minha opinião sobre a opinião. É simplesmente uma explicitação da definição revelada através das próprias pesquisas de opinião, ao pedirem às pessoas para tomarem posição sobre opiniões formuladas, e ao produzirem, através de simples agregação estatística as opiniões assim produzidas, este artefato que é a opinião pública. O que digo é apenas que a opinião pública na acepção que é implicitamente admitida pelos que fazem pesquisas de opinião ou utilizam seus resultados, esta opinião não existe.


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