A OPINIÃO PÚBLICA NÃO EXISTE1
Pierre Bourdieu
Primeiramente
eu gostaria de deixar claro que o meuobjetivo não é denunciar de uma forma
mecânica e fácil as pesquisas de opinião, mas, sim proceder a uma análise
rigorosa de seu funcionamento e suas funções. O que supõe o questionamento de
seus três postulados implícitos. Qualquer pesquisa de opinião supõe que todo
mundo pode ter uma opinião; ou, colocando de outra maneira, que a produção de
uma opinião está ao alcance de todos. Mesmo sabendo que poderei me chocar com
um sentimento ingenuamente democrático, contestarei este primeiropostulado.
Segundo postulado: supõe-se que todas as opiniões têm valor. Acho que é
possível demonstrar que não é nada disso e que o fato de se acumular opiniões que absolutamente não
possuem a mesma força real, faz com que se produza artefatos sem sentido.
Terceiro postulado implícito: pelo simples fato de se colocar a mesma questão a
todo mundo, está implícita, a hipótese de que há um consenso sobre os
problemas, ou seja, que há um acordo
sobre as questões que merecem ser colocadas. Estes três postulados implicam, parece-me,
toda uma série de distorções observadas
mesmo quando todas as condições do rigor metodológico são preenchidas na coleta e na análise dos dados.
Costuma-se
freqüentemente fazer críticas técnicas às pesquisas de opinião. Por exemplo,
coloca-se em dúvida a representatividade das amostras. Acho que no estado atual
dos meios utilizados pelos escritórios de produção de pesquisas, a objeção não
é muito fundamentada. Reprovam-lhes também o fato de colocar questões contendo
viéses ou, mais ainda, de colocar viéses na formulação das questões: isto
já é mais verdadeiro e freqüentemente a
resposta é induzida através da maneira de se colocar a questão. Assim, por
exemplo, transgredindo o preceito elementar da
1Comunicação
feita em Noroit (Arras) em janeiro de
1972 e publicada em Les Temps Modernes,
318, janeiro de 1973.
2
construção de
um questionário que exige que se "dê oportunidade" a todas as respostas
possíveis, omite-se freqüentemente nas questões ou nas respostas propostas uma
das opções possíveis, ou ainda, propõe-se muitas vezes a mesma opção sob
formulações diferentes. Existem todos estes tipos de viéses e seria
interessante se perguntar sobre as condições sociais que propiciam seu
aparecimento. Na maioria das vezes, eles têm a ver com as condições em que
trabalham as pessoas que produzem os
questionários. Mas devem-se principalmente ao fato de que as problemáticas
fabricadas pelos institutos de pesquisa de opinião estão subordinadas a uma
demanda de tipo particular. Assim, empreendendo a análise de uma grande
pesquisa nacional sobre a opinião dos franceses a respeito do sistema de
ensino, nós localizamos, nos arquivos de alguns centros de estudos, todas as
questões referentes ao ensino. Isto nos fez ver que mais de duzentas perguntas sobre o sistema de ensino
foram feitas depois de Maio de 68, contra menos de vinte entre 1960 e 1968.
Isto significa que as problemáticas impostas a este tipo de organismo estão
profundamente ligadas à conjuntura e
dominadas por um certo tipo de demanda social. A questão do ensino, por
exemplo, só pôde ser colocada por um instituto de opinião pública quandose
tornou um problema político. Vê-se imediatamente a distância que separa estas
instituições dos centros de pesquisas que engendram suas problemáticas, senão
em céu aberto, pelo menos com uma distância muito maior emrelação à demanda social
sob sua forma direta e imediata.
Uma análise
estatística sumária das questões colocadas nos mostrou que a grande maioria se
ligava diretamente às preocupações políticas do "pessoal político".
Se esta noite quiséssemos nos divertir brincando com papeizinhos e se eu lhes
dissesse para escrever as cinco questões
que lhes parecem mais importantes sobre o ensino, seguramente obteríamos uma
lista muito diferente da que obtemos a partir das questões que foram
efetivamente colocadas pelas pesquisas de opinião. A pergunta: "Deve-se
introduzir a política nas escolas secundárias?" (ou variantes) foi
colocada com muita freqüência, enquanto a pergunta: "Deve-se modificar os
programas?" ou "Deve-se modificar o modo de transmissão dos
conteúdos?", raramente foi colocada. Da mesma forma: "Deve-se
reciclar os professores?". E tantas questões que são muito importantes,
pelo menos em outra perspectiva.
3
As
problemáticas que são propostas pelas pesquisas
de opinião se subordinam a interesses políticos, e isto dirige de maneira
muito acentuada o significado das respostas e, ao mesmo tempo, o significado
dado à publicação dos resultados, Em seu estado atual, a pesquisa de opinião é
um instrumento de ação política; sua função mais importante consiste talvez em
impor a ilusão de que existe uma opinião pública que é a soma puramente aditiva
de opiniões individuais; em impor a idéia de que existe algo que seria uma
coisa assim como. a média das opiniões ou a opinião média. A "opinião
pública" que se manifesta nas primeiras páginas dos jornais sob a forma de
percentagens (60% dos franceses são favoráveis à...), esta opinião pública é um
artefato puro e simples cuja função é dissimular que o estado da opinião em um
dado momento do tempo é um sistema de forças, de tensões e que não há nada mais
inadequado para representar o estado da opinião do que uma percentagem.
Sabemos que
todo exercício da força se acompanha deum discurso visando a legitimar a força
de quem o exerce; podemos mesmo dizer que é próprio de toda relação de força só
ter toda sua força na medida em que se dissimula como tal. Em suma, falando
simplesmente, o homem político é aquele
que diz: "Deus está conosco". O equivalente atual de "Deus está conosco" é
"a opinião pública está conosco". Tal é o efeito fundamental da pesquisa de opinião:
constituir a idéia de que existe uma opinião pública unânime, portanto
legitimar uma política e reforçaras relações de força que a fundamentam ou a
tornam possível.
Tendo dito no
começo o que queria dizer no fim, vou tentar indicar muito rapidamente quais
são as operações através das quais se produz este efeito de consenso. A
primeira operação, que tem como ponto de partida o postulado segundo o qual
todo mundo deve ter uma opinião, consiste em ignorar as não-respostas. Por
exemplo, você pergunta às pessoas: "Você é favorável ao governo
Pompidou?" Você registra 30% de não-resposta, 20% de sim, 50% de não. Você
pode dizer: a parte das pessoas desfavoráveis é superior à parte das pessoas favoráveis
e depois há este resíduo de 30%. Você também pode recalcular as percentagens
favoráveis e desfavoráveis excluindo as não-respostas. Esta simples escolha é
uma operação teórica de uma importância fantástica, sobre a qual eu gostaria de
refletir com vocês.
4
Eliminar as
não-respostas, é fazer aquilo que se faz numa consulta eleitoral onde há votos
nulos ou brancos; é impor à pesquisa de opinião a filosofia implícita da
pesquisa eleitoral. Se olharmos mais de perto, observamos que a taxa de
não-respostas é de um modo geral mais elevada entre as mulheres do que entre os
homens, que a distância entre as mulheres e os homens torna-se maior quando os
problemas colocados são de ordem mais propriamente política. Outra observação:
quanto mais uma pergunta se refere a problemas de saber, de conhecimento, maior
é a distância entre as taxas de não-respostas dos não-instruídos e dos menos
instruídos. Ao contrário, quando as perguntas se referem a problemas éticos, as
variações das não-respostas segundo o nível de instrução são fracas (exemplo: "Deve-se ser severo com
as crianças?"). Outra observação: quanto mais uma pergunta coloca
problemas conflitivos, se refere a algum
ponto contraditório (por exemplo, uma pergunta sobre a situação na
Tchecoslováquia para pessoas que votam nos comunistas), mais ela gera tensões
para uma determinada categoria, maior a freqüência de não-respostas nesta
categoria.
Conseqüentemente,
a simples análise estatística das não-respostas dá uma informação sobre o que
significa a pergunta e também sobre a categoria considerada, sendo esta
definida tanto pela probabilidade a ela imputada de ter uma opinião quanto pela
probabilidade condicional de ter uma opinião favorável ou desfavorável.
A análise
científica das pesquisas de opinião mostra que praticamente não existe problema
omnibus: não existe pergunta que não seja reinterpretada em função dos
interesses das pessoas às quais ela é colocada e o primeiro imperativo seria o
de se perguntar a que pergunta as diferentes categorias de inquiridos pensaram
estar respondendo. Um dos efeitos mais perniciosos da pesquisa de opinião
consiste precisamente em colocar pessoas respondendo perguntas que elas não se
perguntaram.. Como por exemplo as questões que giram em torno dos problemas da
moral, tratem elas sobre a severidade
dos pais, as relações entre professores e alunos, a pedagogia diretiva ou
não-diretiva, etc., problemas que são encarados como problemas éticos à medida em
que se desce na hierarquia social, mas que podem ser considerados como problemas
políticos pelas classes superiores. Um dos efeitos da pesquisa consiste em
transformar as respostas éticas em respostas políticas pelo
5
simples efeito
de imposição da problemática.
De fato, há
muito princípios a partir dos quais se
pode engendrar uma resposta. Primeiramente, há aquilo que podemos chamar
de competência política em relação a uma definição de política ao mesmo tempo arbitrária e legítima, isto é,
dominante e dissimulada enquanto tal.
Esta competência política não é repartida universalmente. Ela, a grosso modo,
varia como o nível de instrução. Dito de outra maneira, a probabilidade de se
ter uma opinião sobre todas as questões que supõem um saber político é bastante
comparável à probabilidade de ir ao museu. Podemos observar diferenças
fantásticas: onde um estudante engajado em qualquer movimento esquerdista
percebe quinze divisões à esquerda do PSU, um quadro médio não vê nada. Na
escala política (extrema-esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita,
direita, extrema-direita, etc.) que as pesquisas de ciências políticas empregam
como algo óbvio, certas categorias sociais utilizam intensamente um cantinho da
extrema-esquerda; outras utilizam unicamente o centro, outras utilizam a escala
inteira. Finalmente uma eleição é a agregação de espaços inteiramente diferentes;
soma-se pessoas que tiram as medidas por centímetros com pessoas que o fazem
por quilômetros, ou seja, pessoas que graduam de 0 a 20 e pessoas que graduam
de 9 a 11. Mede-se a competência, entre outras coisas, pelo grau de requinte da
percepção (é a mesma coisa em estética, alguns podendo distinguir os cinco ou
seis estilos sucessivos de um único pintor).
Esta
comparação pode ser levada mais longe. Em matéria de percepção estética há, em
primeiro lugar, uma condição permissiva: é preciso que as pessoas pensem a obra
de arte como obra de arte. Depois de tê-la percebido como obra de arte é
preciso que tenham categorias de percepção para construí-la, estruturá-la, etc.
Suponhamos uma pergunta formulada assim: "Você é a favor de uma educação
diretiva ou de uma educação
não-diretiva?" Para alguns, ela será constituída como política onde a
representação das relações pais-filhos se integra numa visão sistemática da
sociedade; para outros, é uma pura questão moral. Assim, o questionário que
elaboramos e onde perguntamos às pessoas se, para eles, fazer greve, ter
cabelos longos, participar de um festival pop, etc., são coisas políticas ou
não, mostrou variações muito grandes dependendo das classes sociais. A primeira
condição
6
para responder
adequadamente a uma pergunta política é, portanto, ser capaz de constituí-Ia
enquanto política. A segunda, tendo-a constituído como política, é ser capaz de
aplicar a ela categorias propriamente políticas que podem ser mais ou menos
adequadas, mais ou menos refinadas, etc. Tais são as condições específicas da
produção de opiniões, que a pesquisa de
opinião supõe estarem universal e uniformemente preenchidas com o seu primeiro postulado
segundo o qual todo mundo pode produzir uma opinião.
O segundo
princípio a partir do qual as pessoas podem produzir uma opinião é o que chamo
de "ethos de classe" (para não dizer "ética de classe"), isto
é, um sistema de valores implícitos que as pessoas interiorizam desde a infância
e a partir dos quais produzem respostas a
problemas extremamente diferentes. As opiniões que as pessoas podem
trocar na saída de uma partida de futebol entre Roubaix e Valenciennes devem
uma grande parte de sua coerência, de sua lógica, ao ethos de classe. Uma
enorme quantidade de respostas, consideradas como políticas são na realidade
produzidas a partir do ethos de classe e podem se revestir, ao mesmo tempo, de
um significado inteiramente diferente quando são interpretados no terreno político. Aqui, tenho que fazer uma
referência a uma tradição sociológica, divulgada principalmente entre certos
sociólogos da política nos Estados
Unidos, que falam muito comumente de um conservadorismo e de um autoritarismo
das classes populares. Estas teses estão baseadas na comparação internacional de
pesquisas ou de eleições que tendem a mostrar que cada vez que se interroga as
classes populares, em qualquer país que seja, sobre problemas referentes às
relações de autoridade, liberdade individual, liberdade de imprensa, etc., elas
dão respostas mais "autoritárias" do que as outras classes. E daí se
conclui, de uma maneira global, que há um conflito entre os valores
democráticos (no autor em que estou pensando, Lipset, trata-se de valores
democráticos americanos) e os valores que as classes populares interiorizam,
valores de tipo autoritário e repressivo. Daí se tira uma espécie de visão
escatológica: elevemos o nível de vida; elevemos o nível de instrução, pois já
que a propensão à repressão, ao autoritarismo, etc., está ligada às baixas
rendas, aos baixos níveis de instrução, etc., produziremos assim bons cidadãos
da democracia americana. A meu ver, o que
está em questão é o significado das respostas a algumas perguntas.
Suponhamos um conjunto de
7
questões do
tipo seguinte: Você é favorável a igualdade de sexos? Você é favorável à
liberdade sexual dos cônjuges? Você é favorável a uma educação não-repressiva?
Você é favorável à nova sociedade?,etc. Suponhamos um outro conjunto de
questões do tipo: Os professores devem fazer greve quando sua situação se
encontrar ameaçada? Os docentes devem ser solidários aos outros funcionários
nos períodos de conflito social?, etc. Estes dois conjuntos de perguntas dão
respostas com estruturas estritamente inversas quanto à classe social. O
primeiro conjunto de perguntas, que se refere a um certo tipo de renovação nas
relações sociais, na forma simbólica das relações sociais, suscita respostas
muito mais favoráveis quando se sobe na hierarquia social e na hierarquia
segundo o nível de instrução; inversamente, as perguntas que se referem às
transformações reais das relações de força entre as classes sociais suscitam
respostas mais e mais desfavoráveis à medida que se sobe na hierarquia social.
Resumindo, a
proposição "as classes populares são repressivas" não é nem
verdadeira nem falsa. É verdadeira na medida em que, diante de todo um conjunto
de problemas como os que tocam à moral doméstica, às relações entre as gerações
ou entre os sexos, as classes populares têm a tendência de se mostrar muito
mais severas do que as outras classes sociais. Ao contrário, sobre as questões
de estrutura política, que colocam em jogo a conservação ou a transformação da
ordem social, e não apenas a conservação
ou a transformação dos modos de relação entre os indivíduos, as classes
populares são muito mais favoráveis à inovação, isto é, a uma transformação das
estruturas sociais. Vocês podem ver como certos problemas colocados em Maio de
68, e freqüentemente mal colocados, no conflito entre o Partido Comunista e os
esquerdistas, ligam-se diretamente ao problema central que tentei colocar esta
noite, o da natureza das respostas, isto é, do princípio a partir do qual elas
são produzidas. A oposição que fiz entre estes dois grupos de perguntas se
remete, com efeito, à oposição entre dois princípios da produção de opiniões:
um princípio propriamente político e um princípio ético, sendo o problema do
conservadorismo das classes populares produto da ignorância desta distinção.
O efeito de
imposição da problemática, efeito exercido por qualquer pesquisa de opinião e
por qualquer interrogação política (a começar pela
8
eleitoral),
resulta do fato de que às perguntas colocadas numa pesquisa de opinião não são
perguntas que realmente se colocam a
todas as pessoas interrogadas e as respostas não são interpretadas em função da
problemática que servia efetivamente como referência, às diferentes categorias
de inquiridos. Assim, a problemática dominante, cuja i magem é revelada pela
lista de perguntas feitas durante dois anos pelos institutos de pesquisas de
opinião, ou seja, a problemática que interessa essencialmente às pessoas que
detêm o poder e querem ser informadas sobre os meios de organizar sua ação
política, é dominada de forma bastante desigual pelas diferentes classes
sociais. E, fato importante, estas estão mais ou menos aptas a produzir uma contra-problemática. A respeito
do debate televisionado entre Servan-Schreiber e Giscard d'Estaing, um
instituto de pesquisa de opinião colocou perguntas do tipo: "0 sucesso
escolar se deve ao talento, à inteligência, ao trabalho, ao mérito?" As
respostas obtidas efetivamente liberam uma informação (ignorada por aqueles que
as produziam) sobre o grau de consciência das diferentes classes sociais a
respeito das leis de transmissão
hereditária do capital cultural: a adesão ao mito do talento e da
ascensão através da escola, da justiça escolar, da eqüidade da distribuição dos
cargos em função dos títulos, etc., é muito forte nas classes populares. A
contra-problemática pode existir para alguns intelectuais, mas não tem força
social, embora tenha sido retomada por alguns partidos e grupos. A verdade
científica é submetida às mesmas leis de difusão que a ideologia. Uma
proposição científica é como uma bula papal sobre o controle da natalidade que
só prega aos convertidos.
A idéia de
objetividade numa pesquisa de opinião é associada ao fato de se fazer a
pergunta nos termos mais neutros possíveis para dar chances a todas as
respostas. Na verdade, a pesquisa de opinião estaria, sem dúvida, muito mais
próxima do que acontece na realidade se, transgredindo completamente as regras
da "objetividade", fossem dados às pessoas os meios para que elas se
situassem da mesma forma como realmente se situam na prática real, isto é, em
relação a opiniões já formuladas. Se por exemplo, em vez de dizer "Há
pessoas que são favoráveis ao controle da natalidade e outras são desfavoráveis
e você?...", se enunciasseuma série de tomadas de posição explícita de
grupos solicitados para constituir e difundir opiniões, de modo que as pessoas
pudessem se situar em relação à respostas já
9
constituídas.
Fala-se freqüentemente de “tomadas deposição"; existem posições que já são
previstas e que são tomadas. Mas isso não acontece por acaso. Uma pessoa toma
as posições que está predisposta a tomar em função da posição que ocupa num
certo campo. Uma análise rigorosa visa explicar as relações entre a estrutura
de posições a serem tomadas e a estrutura do campo das posições objetivamente
ocupadas.
Se as
pesquisas de opinião apreendem muito mal os estados virtuais da opinião e mais
exatamente os movimentos de opinião, é, entre outras razões, porque a situação
na qual elas apreendem as opiniões é inteiramente artificial. Nas situações em
que se constitui a opinião, em particular as situações de crise, as pessoas se
encontram diante de opiniões constituídas, de opiniões sustentadas por grupos,
de forma que escolher entre duas opiniões é evidentemente escolher entre
grupos. Tal é o princípio do efeito de politização que produz a crise: é
preciso escolher entre grupos que se definem politicamente e definir cada vez
mais tomadas de posição em função de princípios explicitamente políticos. De
fato, o que me parece importante é que a pesquisa de opinião trata a opinião
pública como uma simples soma de opiniões
individuais, recolhidas numa situação que
no fundo é a da cabine indevassável, onde o indivíduo vai exprimir
furtivamente, no isolamento, uma opinião isolada. Nas situações reais, as
opiniões são forças e as relações entre opiniões são conflitos de força entre
os grupos.
Uma outra lei
resulta destas análises: tem-se muito mais opiniões sobre um problema quando se
está mais interessado por este problema, isto é, quando se tem mais interesse
neste problema. Por exemplo, a taxa de respostas sobre o sistema de ensino está
muito intimamente ligada ao grau de proximidade em relação ao sistema de
ensino, e a probabilidade de ter uma opinião varia em função da probabilidade
de ter poder sobre o que se opina. A opinião que se afirma enquanto opinião,
espontâneamente, é a opinião das pessoas cuja opinião tem peso, como se costuma
dizer. Se um Ministro da Educação agisse em função de uma pesquisa de opinião
(ou pelo menos a partir de uma leitura superficial da pesquisa), elenão faria o
que ele faz quando age realmente como um homem político, isto é, a partir dos telefonemas
que recebe, da visita de tal responsável sindical, de tal decano, etc. De fato,
ele age em função destas forças de opinião realmente
10
constituídas
que só afloram à sua percepção à medida em que têm força e têm força porque são
mobilizadas.
Quanto a
prever o que será da Universidade nos próximos dez anos, acho que a opinião
mobilizada constitui a melhor base. No entanto, o fato - atestado pelas
não-respostas - de que as disposições de certas categorias não acedem ao
estatuto de opinião, isto é, de discurso
constituído aspirando à coerência, aspirando a ser ouvido, a se impor,
etc., não deve levar à conclusão de que, em situações de crise, as pessoas que
não tivessem nenhuma opinião escolheriam ao acaso. Se o problema está
politicamente constituído para eles (problemas salariais e de ritmo de trabalho
para os operários), eles vão escolher em termos de competência política. Se
trata-se de um problema que não está politicamente constituído para eles
(caráter repressivo das relações na empresa), ou se está em vias de
constituição, as pessoas serão guiadas pelo sistema de disposições
profundamente inconsciente que orienta as escolhas nos mais diferentes
domínios, desde a estética ou o esporte até as preferências econômicas. A
pesquisa de opinião tradicional ignora, ao mesmo tempo, os grupos de pressão e
as disposições virtuais que às vezes não se exprimem sob a forma de discurso
explícito. É por isto que ela não é capaz de produzir nenhuma previsão razoável
sobre o que acontecerá numa situação de crise.
Suponhamos um
problema como o do sistema de ensino. Pode-se perguntar: "0 que você acha
da política de Edgar Faure?" É uma pergunta muito próxima a de uma
pesquisa eleitoral, no sentido de que à noite todos os gatos são pardos: grosso
modo, todo mundo está de acordo sem saber sobre o que; sabe-se o que significou
o voto por unanimidade da lei Faure na Assembléia Nacional. Em seguida,
pergunta-se "Você é favorável à introdução da política nos colégios
secundários?" Aqui, observa-se uma divisão muito nítida. Ocorre o mesmo
quando se pergunta: "Os professores podem fazer greve?" Neste caso,
os membros das classes populares, por uma transferência de sua competência
política específica, sabem o que responder.
Pode-se
perguntar ainda: "Deve-se transformar os programas? Você é favorável à
aferição contínua dos resultados? Você é
favorável que os pais de alunos entrem para os conselhos de professores? Você é
a favor da
11
agrégation?"2,
etc. Na pergunta "você é favorável a Edgar Faure?", havia todas estas
perguntas e as pessoas tomaram uma única posição de uma só vez sobre um
conjunto de problemas que um bom questionário só poderia colocar através de
pelo menos sessenta perguntas a propósito das quais se observariam variações em
todos os sentidos. Em alguns casos as opiniões estariam positivamente ligadas à
posição na hierarquia social, em outros, negativamente, às vezes de maneira
muito forte, às vezes de maneira fraca, ou
não teriam nenhuma ligação. Basta pensar que uma consulta eleitoral representa
o limite de uma pergunta como, "você é favorável a Edgar Faure?", para
compreender porque os especialistas de sociologia política notam que a relação
que se observa habitualmente, em quase todos os domínios da prática social,
entre a classe social e as práticas ou as opiniões, é muito fraca quando se
trata de fenômenos eleitorais, a tal ponto que alguns não hesitam em concluir
que não há qualquer relação entre a classe social e o fato de votar na direita
ou na esquerda. Se vocês tiveram em mente que uma consulta eleitoral coloca
numa única pergunta sincrética aquilo que só poderia ser razoavelmente
apreendido em duzentas perguntas, que uns medem em centímetros e outros em
quilômetros, que a estratégia dos candidatos consiste em colocar mal as perguntas
e se esforçar ao máximo para esconder as clivagens e ganhar votos indecisos, e
tantas outras coisas, vocês concluirão que talvez seja preciso inverter a
questão tradicional da relação entre voto e classe social e se perguntar por
que, apesar de tudo, constata-se uma relação, mesmo fraca; e se interrogar
sobre a função do sistema eleitoral, instrumento que por sua própria lógica,
tende a atenuar os conflitos e as clivagens. O que é certo é que estudando o
funcionamento das pesquisas de opinião, pode-se ter uma idéia da maneira como
funciona este tipo particular de pesquisa que é a consulta eleitoral e do
efeito que ela produz.
Em suma, o que
eu quis dizer foi que a opinião pública não existe, pelo menos na forma que lhe
atribuem os que têm interesse em afirmar sua existência. Disse que por um lado
haviam opiniões constituídas, mobilizadas, grupos de pressão mobilizados em
torno de um sistema de interesses explicitamente formulados; e por outro lado,
disposições que, por definição,
2 Agrégation: o titulo mais alto recebido após
a conclusão de certos cursos superiores, como por exemplo o curso de Letras ou
História.
12
não constituem
opinião, se por esta palavra compreendemos, como fiz ao longo desta análise,
alguma coisa que pode ser formulada num discurso com uma certa pretensão à
coerência. Esta definição da opinião não
é a minha opinião sobre a opinião. É simplesmente uma explicitação da definição
revelada através das próprias pesquisas de opinião, ao pedirem às pessoas para
tomarem posição sobre opiniões formuladas, e ao produzirem, através de simples
agregação estatística as opiniões assim produzidas, este artefato que é a
opinião pública. O que digo é apenas que a opinião pública na acepção que é
implicitamente admitida pelos que fazem pesquisas de opinião ou utilizam seus
resultados, esta opinião não existe.
Comentários
Postar um comentário